terça-feira, 26 de novembro de 2002

CLÁSSICOS: APOCALYPSE NOW REDUX / Apocalipse antes tarde do que nunca

Milagre! Aconteceu o que ninguém esperava: “Apocalypse Now Redux” estreou em Joinville! Fui toda faceira assistir ao clássico de Coppola pela primeira vez no cinema. Quando o original foi lançado, em 1979, eu era muito novinha.
Pra quem não sabe, não há nada no original que não esteja aqui. Nada foi tirado. E esta não é uma refilmagem. No relançamento de “ET”, se você piscar, você perde os dois minutos e pouco que foram acrescentados. Em “Apocalypse”, não há chance
disso ocorrer. Tem quase uma hora de acréscimos, catapultando o épico pra três horas e 20 minutos de duração. Agora, tenho uma boa e uma má notícia pra contar. Qual você quer primeiro? A boa: vale a pena ficar sentadinho numa poltrona não muito confortável pra presenciar este espetáculo numa telona. A má: os 50 minutos a mais não dizem a que vieram.
Eu, sendo a formidável crítica cinematográfica que sou, estou num dilema. Não sei pra quem dirigir este texto (supondo que alguém me leia). A quem nunca ouviu falar de “Apocalypse”? A quem já ouviu falar, sabe que é uma obra importante, mas nunca a viu? A quem já a viu mas não conhecia o “redux”? A quem já a viu várias vezes, viu também o excelente documentário “O Apocalipse de um Cineasta”, até leu o livro “Coração das Trevas”, de Conrad, no qual a obra foi baseada, e sabe todos os detalhes da nova versão? Bom, se você estiver neste último grupo, só posso perguntar: meu filho, pra que você quer ler este artigo? Então decidi escrever pra quem já viu o filme, mas não está a par das novidades.
Primeiro, a história. “Apocalypse Now” é sobre a insanidade de qualquer guerra, mais especificamente a do Vietnã. Um militar interpretado por Martin Sheen é enviado em missão secreta para liquidar o coronel Kurtz, ninguém menos que o deus Marlon Brando, que ficou maluco e fundou uma seita no meio da selva. No longo caminho de barco até lá, Martin conhece tipos esquisitos, como o lunático feito por Robert Duvall, que usa chapéu de caubói, não pisca com os tiros que lhe passam raspando, gosta de trucidar malditos vietcongues ouvindo Wagner, crê que está no Vietnã pra surfar, e declara “adoro o cheiro de napalm pela manhã”. Não é à toa que este é o personagem mais marcante. Há também Larry Fishburne (de “Matrix”) aos 14 aninhos, Harrison Ford limpando a garganta, e o alucinante fotógrafo adorador de Kurtz vivido por Dennis Hopper, que, visivelmente, não estava drogado por amor ao seu papel. Estava drogado e pronto. É impressionante que tenha conseguido decorar suas falas. Mas compõe outra figura inolvidável.
Coppola não estava normal quando dirigiu “Apocalypse”. Tinha o ego inflado por
causa do sucesso de “O Poderoso Chefão” (1 e 2), considerava-se acima do bem e do mal, gastava os tubos. Não deu ouvidos a quem lhe desaconselhou rodar sua odisséia nas Filipinas, onde havia tufões e golpes de estado. Conclusão: entre inúmeros desastres, Martin Sheen teve um ataque cardíaco; Coppola estourou o orçamento em dezenas de milhões e quase faliu. Mas realizou uma obra-prima. Não uma obra perfeita, já que “Apocalypse” tem muitos defeitos. Pra começar, o final é confuso e cerebral demais e revela que ninguém fazia a menor idéia de como terminar o filme. Pessoalmente, nem creio que “Apocalypse” seja a melhor produção sobre o Vietnã. Prefiro “Nascido para Matar”, mas acho que sou minoria, e trago enorme desprezo por atentados como “Platoon”. Porém, o clássico de Coppola tem momentos surrealistas realmente únicos, como os helicópteros ao som de “Cavalgada das Valquírias”, o show das coelhinhas da Playboy no meio do nada, as flechas e lanças que surgem de repente, e a terrível seqüência em que os soldadinhos americanos revistam um bote de pescadores vietnamitas, e os chacinam. Talvez o espírito da obra possa ser resumido no breve diálogo entre Martin e Brando, onde Brando pergunta: “Você acha meus métodos insanos?”, e Martin responde: “Francamente, não vejo método algum, senhor”.
Este “redux”, 22 anos depois, traz um reencontro entre os soldados e as coelhinhas, e todo um subtexto dos franceses no Vietnã, que chegaram lá antes dos ianques. Fica mais político, a fotografia é linda, mas parece estar em outro filme e arrasta um pouco o ritmo. O coronel-surfista de Duva
ll é mostrado ainda mais desmiolado ao sobrevoar o pântano e gritar “Não vou machucar vocês. Só quero minha prancha de volta”. O fim torna-se um tiquinho menos abrupto porque Brando ganha mais falas, mas isso não torna o “the end” menos fraco. Aqui cabe um parêntesis. Vejo muito crítico por aí que toma as dores do Kurtz e passa a idolatrá-lo, sem perceber que ele é doido de pedra. Tsc tsc, o papel do fotógrafo (Hopper) é essencial porque ele também beija o chão que Kurtz pisa. Mas dá pra perceber que ele está alterado, e que o objeto de sua devoção é pura pretensão. No livro de Conrad, as coisas ficam mais claras. O protagonista decepciona-se com Kurtz e com suas célebres últimas palavras (“O horror... O horror...”) que, no fundo, são ditas pelo coronel para descrever o que ele vê dentro de si próprio, em seu coração das trevas. Quando o protagonista encontra a noiva de Kurtz e ela quer saber quais foram os suspiros finais de seu amado, ele mente que foram o nome dela. Kurtz não é nenhum santo – é apenas mais um desequilibrado que sente prazer em matar. Acho que os críticos perdem este ponto porque é Brando que interpreta Kurtz, e tudo bem, a gente tem mesmo que se curvar diante de Brando. E diante de “Apocalypse Now” que, apesar de suas imperfeições, é cinema de verdade, pra gente grande.

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